Embaraçado

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Por um acaso que a ciência ainda não explica, nascera homem e grávido. O feto que trazia morto no ventre, emparedado entre órgãos vitais, perigosamente próximo ao fígado, não poderia ser retirado sem risco de morte. Vencer a parede do óvulo não bastou ao gameta que acabou fóssil, tragado pelo desenvolvimento do embrião gêmeo.

Para ele, dono do corpo vingado, o que incomodava mesmo era o antiestético calombo na barriga. Sentia até certo orgulho em carregar seu duplo lá dentro, mas a protuberância, acreditava, dificultava as coisas do amor, embora soubesse, pelos comentários das mulheres que passaram pela sua cama, que elas não se importavam muito com isso. Meu bem, mesmo careca e barrigudo, um homem bem sucedido e sexualmente habilidoso, satisfaz qualquer mulher, afirmara a mais espetacular. Certo de suas habilidades tomou a declaração como elogio.

Era cirurgião. Com pouco mais de uma década de atuação havia desenvolvido uma técnica revolucionária para operações de alto risco. O crescente sucesso profissional ocupava sua vida como um carcinoma. Usava a ambição que o contagiava à guisa de lenitivo ao vácuo da existência sem graça, pretendendo a salvação pela metástase profissional. Confundia satisfeito vida e ofício. Cada vez mais acreditava que só aos obsessivos lograva pisar o Olimpo. Seu nome entraria nos anais de qualquer maneira. Custasse o que fosse, atingiria a imortalidade.

E que imortal precisa do amor de uma mulher quando é objeto do desejo de um batalhão delas?

Convidado a participar de um congresso, mais como paciente que profissional, sequer pensou em não aceitar, afinal, ser o foco de qualquer forma de atenção da comunidade médica era fundamental à evolução da carreira. Mas quem acabou roubando a cena ─ como era previsível, menos para ele até então ─ foi sua miniatura morta.

Golpeado de surpresa no centro da vaidade, sentiu um desconforto abdominal intenso quando viu o interior exposto pela ressonância magnética na capa do mais prestigioso periódico científico do mundo.

Como aquilo dentro dele, aquela larva inofensiva e fracassada, mesmo que em certa medida sua extensão, interpunha-se entre ele e o futuro magnífico? Queria ser reconhecido no que carregava de único, não como freak. O gênio da técnica cirúrgica estava sendo preterido pela mumiazinha.

Senhores, aqui dentro do colega está um exemplar de raríssima ocorrência. Um erro de fecundação incomum, de extração perigosa e talvez inútil, apresentou o palestrante, apontando a tela com a imagem fixa do bonequinho de cabelos espigados.

Tudo que ele mais queria era extrair o irmãozinho — como o chamava nas conversas consigo mesmo — de dentro de si. Para a tarefa, pretendia que lhe fosse aplicada a própria técnica durante a operação transmitida ao vivo, via internet, para os principais centros cirúrgicos do planeta.

No dia seguinte à apresentação, enquanto eram tomadas as últimas providências para a realização do procedimento-evento, uma surpresa abalou a equipe médica que avaliava as dimensões do tecido a ser extirpado: o apêndice parecia vivo.

A operação foi suspensa. Novos exames, agora invasivos e em maior profundidade, constataram que o feto não só estava vivo como se desenvolvia. Em um intervalo de pouco mais de 24 horas os padrões da vascularização que o ligava ao corpo do hospedeiro haviam sido delicadamente alterados.

Uma junta de entendidos decidiu que, embora sob risco de vida o paciente devesse ser operado, seria mais seguro manter a gravidez até o limite de sua saúde para que a situação pudesse ser observada in loco. Por trás dessa resolução, um desafeto secreto, influente membro do grupo, tramava a eliminação do infeliz doutor. Parecia a oportunidade perfeita.

Na retórica daquele, a decisão de estudar o desenvolvimento do feto para respaldar a opção pelo procedimento soava mais adequado que o argumento puro e simples do avanço científico a qualquer preço, embora não passassem da mesmíssima coisa dita em outras palavras. Ainda assim, entre as soluções apresentadas pela equipe, matar o bebê com agentes químicos, mantendo-o no interior do portador, também parecia seguro.

O gestante não concordou com nenhuma das duas. Queria ver-se livre do caroço, aproveitando para divulgar mundialmente sua técnica, que, acreditava, sairia consagrada do episódio.

Com o vazamento da notícia e a celebridade instantânea que a bizarria do caso suscitava, a vida do cirurgião virou um inferno. De semanários a publicações mundo cão, a caterva em torno da qual se articula a imprensa marrom bandeou-se sobre a carcaça do desgraçado. Como é praxe, o conluio agregou a cretinália midiota da vez, além dos costumeiros religiosos e políticos em busca de evidência. 

Senhor presidente desta casa, nobres colegas, não é segredo para ninguém que em acordo com os preceitos cristãos que sempre nortearam minhas ações, sou radicalmente contra qualquer forma de aborto, por entender que todo ser humano tem direito à vida. Como principal representante da bancada evangélica, venho pedir a votação, em caráter de urgência, de uma emenda constitucional que garanta o direito à vida para os fetos gerados fora do ambiente do útero materno. Entendemos que, por não serem responsáveis pelo destino incomum que a providência divina lhes reservou, a vida não lhes possa ser subtraída, mesmo estando a do progenitor sob risco.

Aproveito para registrar meu repúdio a este cidadão, que embora tendo sido presenteado por Deus com a possibilidade da maternidade, teima em incorrer no duplo erro, de natureza moral e jurídica, do parricídio fratricida.  

A situação mexeu fundo na cabeça do cirurgião. Tanta pressão da mídia em polvorosa, dividida em pró e contra a operação ― pendendo sempre para o lado da audiência ―, mais o absurdo da situação, além das alterações hormonais que bombardeavam seu corpo, terminaram por fazê-lo mudar de ideia.

Surpreendeu a todos com a decisão de dar à luz ao filho-irmão. Se já vivia no inferno, porque não abraçar o capeta?

À maneira de um Fausto pós-moderno o doutor passou a fazer de tudo pela fama. Zanzava pra cima e pra baixo em companhia de um grupo de militantes transgênero, cuja ONG apoiava-lhe a causa por antever na situação a véspera da fertilização gay.

Ofereceu-se sem obstáculos às revistas, aceitando de bom grado o neologismo com que batizaram sua inédita condição: Pãe, mistura de pai com mãe (obliterando ainda mais o detalhe de ser mero vetor do feto do irmão).

Quando a barriga começou a crescer, em meados de abril, assinou contrato com uma agência de propaganda para estrelar a campanha de dia das mães para uma marca de serviços de telefonia celular.

Jantava com jornalistas, almoçava com publicitários, lanchava com relações públicas.

Totalmente entregue aos delírios da notoriedade, viciou-se em centro das atenções. Nas mulheres nem pensava muito mais, a barafunda hormonal o deixara meio assexuado.

No meio do turbilhão, uma inesperada crise de angústia o atirou de volta à realidade. Aconselhado de que quem sobe muito rápido desaparece no espaço sem deixar vestígios, passou a negacear com a mídia num esconde-esconde que fermentou o frenesi em torno da gestação.

Parou de trabalhar. Trancou-se em casa. Algum tempo depois, enjoado de passar os dias deitado a rever recortes e gravações de matérias sobre si, de vaguear por sites de busca à caça de hiperlinks para o seu nome, ensaiou um retorno.

Impedido de entrar pela aglomeração na porta da clínica, voltou para casa deprimido e dormiu o resto do dia. No meio da madrugada, devorado pelo desejo de pêssegos em calda, teve de sair atrás deles.

Mas num mundo em que câmeras fotográficas integradas ao telefone móvel podem transformar cidadãos em paparazzi instantâneos, foi descoberto em meio às gôndolas do supermercado 24 horas e perseguido por um bando de gente disparando flashes na direção da barrigona. Abandonou as latas de pêssego no carrinho. Desesperado, voltou ao automóvel em busca de alguma privacidade atrás do vidro fumê. Não teve jeito, precisou acelerar do estacionamento direto para a avenida.

Tomou o primeiro túnel que surgiu, sem tempo de ler a placa que avisava sobre as obras lá dentro. E foi ali mesmo, digladiando com os fotógrafos como uma princesa em fuga, que perdeu a direção e deu de cara num pilar de concreto.

Sobreviveu.

O bebê foi esmagado pelo mesmo airbag que lhe salvou a vida.

A técnica que tanto queria demonstrar ao resto do mundo serviu à perfeição na retirada dos restos mortais do irmãozinho. Pouca gente viu. Como precisasse passar por uma pequena cirurgia reparadora no abdome, aproveitou e mandou lipoaspirar a gordura sobressalente.

Saiu do hospital outro homem. Vazio do ônus do irmão e de vontade. Nem a ambição profissional dava mais conta de lhe preencher os espaços. Ainda fez algumas tentativas de relacionamento, mas o amor de uma única mulher, sempre insuficiente, agora era nada. Sem os holofotes do mundo, sua vida virou um buraco negro.

Foi encontrado pela empregada em posição fetal no meio da sala, numa segunda-feira cinzenta. Do que morreu, permanece mistério até hoje. O mesmo da mutação que lhe prendeu o irmão dentro da barriga.