A senha

delphine

Ela se virou dentro da bata-vestido florida que cobria o corpanzil como uma capa de botijão de gás e, de costas pra mim, disse: “Se eu falasse o que realmente penso das pessoas, ninguém mais olharia na minha cara.”

“Pra mim você, por favor, me diga tudo-tudo. Vim aqui pra isso.”

“Você gosta de jogar, mas não curte o jogo da vida, olha só! Esse jogo que não se vende em lugar nenhum, que as regras todo mundo conhece. É tudo jogo, rapaz! Essa nossa conversa, também.”

O cheiro azedo do ambiente me lembrava de que aquele lugar era extensão do organismo da habitante.

“Mas você veio aqui pra saber exatamente o quê?”

“Eu preciso me lembrar de uma coisa. Uma coisa importante que eu não tô conseguindo. Uma senha. Me disseram que você consegue entrar dentro da nossa mente.”

Ela me indicou a mesa no meio da cozinha com um gesto de cabeça enquanto tirava um cigarro do maço e acendia numa boca do fogão.

“Não sou eu, as energias é que se conectam comigo. Elas passam por todo mundo. Os pensamentos atravessam a gente que nem sinal de celular. Eu consigo ouvir as ligações. Só isso. Não adivinho nada, entende, cara? Esse dom eu não tenho.”

“Deve ser divertido.”

“Eu nunca saio daqui. É difícil. Tenho que precisar muito, sabe? Andar na rua é um martírio. Um sufoco!  Fico lendo as pessoas que passam. Todas! Escuto, vejo coisa que, eu te juro por Deus e tudo quanto é mais sagrado, eu nunca gostaria de saber.  Nunca, mesmo! É um inferno. Até costumo sair de óculos escuros porque o contato visual é muito angustiante, sabe? Não é divertido igual a passar o dia jogando. Você não cansa de jogar?”

“Só sei fazer isso.”

“Mentira. Você sabe fazer muita coisa. Inventa equipamentos. Desenha. Planejou um universo inteiro dentro de um computador. Que coisa bonita! Criou até uma língua do nada pra conversar com seu vizinho e os outros amigos não entenderem.”

“Preciso dessa senha que não consigo lembrar. É importante.”

“Não tenho acesso a coisas esquecidas.”

“E como você revelou lembranças da infância para uma pessoa que não se lembrava mais de nada?”

“Não me lembro disso, não. Foi ela que te mandou aqui?”

“Era eu. Faz bastante tempo isso.”

“Tem coisa que é melhor esquecer.”

“Mas eu não quero! Me fizeram lavagem cerebral. Eu preciso lembrar!”

“Se eu fizer isso, vão me matar.”

Quando olhei dentro dos olhos dela. Bem dentro da pupila acinzentada no meio da esclerótica amarela, ela saltou da cadeira e correu até a porta do pequeno banheiro ou uma despensa ou sei lá o quê, mas escorregou antes de abrir e se estatelou no chão.

“Eles vão me matar!”

“Não vão, não. Você já tá morta desde que entrou aqui, Alzira. Me dá essa senha, por favor!”

“Eu não posso!”

“Pode, sim. Você sabe que, se me disser, o sofrimento de todo mundo acaba. Inclusive o seu. Você quer ficar pra sempre picando cebola na cozinha desse hospício?”

“Estou segura aqui. Protegida dessas energias assassinas!”

“Alzira…”

“221903014””

A última coisa de que me lembro foi do Dr. Navarro entrando na cozinha com dois enfermeiros fortes que me carregaram até uma sala com um sofá vermelho. Me pediram para sentar e esperar em silêncio. Depois de um tempo sozinho naquela sala, uma moça muito alta e magra entrou, me levou até um elevador que desceu até o que parecia ser uma garagem muito grande e me colocou dentro de um carro de cor metálica. Dentro desse carro tinha umas pessoas que não consegui reconhecer. Eram duas. Uma sorriu pra mim e disse: “Alzira, fica tranquila. A gente vai te levar pra um lugar muito melhor. Um lugar de paz, cheio de bichos e plantas, onde você vai encontrar gente igual a você. Ele nunca mais vai te incomodar. Eles pegaram ele graças à você. A senha era pra poder tirar ele de dentro da sua cabeça.”

Eu olhei para o meu corpo redondo, protegido embaixo de um tecido desbotado e encardido, com estampas de pequenas flores azuis. Tinha seios. Uma mancha roxa na coxa direita. Dor nos dois joelhos. Minhas unhas da mão estavam sujas e cheirando a cebola e cigarro. Fechei os olhos e vi linhas de código. Comecei a programar de cabeça. A última coisa de que me lembro antes de adormecer e acordar na poltrona desse avião onde a gente conversa agora, foi que tinha dado a senha errada pra ele.